Troquei meu televisor em branco-e-preto por um televisor em cores com controle remoto, para facilitar a vida de mus filho, que agora, sabe como é, época de provas, estão se virando mais que pião na roda. Imaginem que outro dia um professor teve a coragem de mandar meu filho gavião-da-fiel fazer um trabalho sobre o Sócrates. Fiquei uma arara.
Em todo caso, apanhei a revista Placar e recomendei que o garoto consultasse os arquivos esportivos da Folha e do Jornal da Tarde. Não é por ser meu filho, mas o guri caprichou do primeiro ao quinto. Tirou zero.
Puxa, assim também é demais. Resolvi levar um papo com o professor, ver se não era perseguição. O professor foi muito gentil, porém ninguém me tira da cabeça que ele é palmeirense disfarçado de são-paulino. Garantiu-me que havia ocorrido um equívoco. O Sócrates que ele queria é um craque da redonda que tomou cicuta. Essa é boa. Por que não avisou antes? Como é que vou adivinhar que o homem jogava dopado?
Me manquei, mas o professor percebeu meu azedume. Disse que ia dar uma nova oportunidade. Falou, eu disse.
Preveni meu garoto que ficasse de orelha em pé, lá vinha chumbo. Dito e feito. O professor, deixando cair a máscara alviverde, deu uma de periquito campineiro e pediu um trabalho completo sobre o Guarani.
Deixa que eu chuto, falei a meu filho. Pode contar comigo na regra três. Eu mesmo cuido da pesquisa.
Peguei a escalação completa do Guarani, botei o Neneca no gol, fiz a maior apologia do time das andorinhas. Pra me cobrir e não deixar nunhum flanco desguarnecido, telefonei pro meu amigo Antônio Contente [...] e pedi por favor que me mandasse uma camisa oito autografada. Diretamente de Campinas e pelo malote.
Não é pra falar, mas trabalho escolar ficou um luxo. Sem falsa modéstia, estava esperando pro meu filho no mínimo aprovação cum laude e placa de prata, para não dizer medalha de honra ao mérito. Pois deu zebra.
Começo a desconfiar que o tal professor me armou uma arapuca e entrei fácil, como um otário. [...] Sabem o que o mestre fez? Hem? Querem saber? Deu outro zero pro meu filho. O pior é que não devolveu a camisa oito autografada.
Essa não deixei barato. Fui de peito aberto, às falas.
- Ilustre – eu disse -, com o perdão da palavra, mas que diabo de safadeza vossa senhoria anda arrumando pro meu garoto gavião-da-fiel? Então eu perco tempo, pesquiso, consulto a história gloriosa da equipe campineira, faço a maior zorra com o time do Brinco da Princesa, e o garoto ganha cartão vermelho?
Que grande cínico! O homem me olhou com aqueles olhos de olheiras – acho que tem almoçado e jantado mal, sei lá, dizem que professor padece um bocado -, coçou a cabeça, murmurou:
- Foi o senhor quem fez a lição?
Fiquei meio sem jeito.
- Bem, fazer não fiz. Dei uma orientação didática. Pai é para essas coisas...
Ele não se comoveu. Ao contrário, foi até rude:
- Se aceita um conselho, pare de dar palpite na lição de casa de seu filho. O senhor não conhece nada do Guarani.
Falar isso na minha cara! Tive de agüentar calado. Nunca soube que no diacho do time campineiro figurasse a dupla de área chamada Ceci e Peri. E com essa constante mudança de técnicos, como podia sacar que o técnico atual é o Zé de Alencar?
- Tá bem – eu disse -, não vamos brigar por tão pouco. O professor pode dar outra colher de chá ao menino?
Deu. O professor quer agora os capítulos completos de um romance, por coincidência com o mesmo nome do time de Campinas: o Guarani. É qualquer coisa com um índio sioux que de repente se vê obrigado a salvar uma mulher biônica das águas da enchente. Deve ser telenovela em cores. Mas só para complicar a vida do meu filho, o professor não revelou o horário. Porém desta vez ele não me ferra. Pela dica do enredo que deixou escapar, deve ser mais uma dessas sucessões de cenas de violência que a gente é obrigado a engolir todas as noites na televisão. Estou de antena ligadona, meu chapa.
(Lourenço Diaféria, In Para gostar de ler, vol 7; São Paulo, Ática, 1993.)
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